segunda-feira, 26 de março de 2012

Se me chamar de racista, a coisa fica preta

Talvez o título seja meio provocativo. Mas foi a forma que me pareceu sensibilizá-lo a vir até aqui, e ler.

Algumas vezes na vida utilizei a expressão "a coisa tá preta". Quase todas as vezes em que falei isso para algum negro recebi uma resposta, clara ou velada, de que a expressão não caiu bem.

Nada a ver. Nossa língua é rica, e é preciso entender direito os significados das expressões antes de tachá-las disso ou daquilo.

Não sou racista. Não sou mais. Já fui, até por volta da adolescência, ou início da juventude. Mas, por favor, não me crucifiquem por isso. Era (ou ainda é) uma coisa cultural, de herança, que tem diminuído, mas não podemos prever quando acabará por completo. A maioria dos brancos, filhos de pais brancos, ou com predominância de "sangue branco", passa por isso durante o seu crescimento. Passei a infância e mais um pouco ouvindo expressões preconceituosas do meu próprio pai, e outros adultos do meu círculo. E uma infinidade de piadas menosprezando negros; e portugueses; e baianos. Os diferentes, enfim.

É difícil se libertar disso, meus amigos negros, portugueses e baianos. Mas consegui. Acreditem, consegui. E não foi hoje, já faz muito tempo. Podem me dar os parabéns, porque a luta foi dura.

Agora, quando eu disser que "a coisa tá preta", por favor, não vejam nisso uma recaída. Antes, olhem no dicionário.

Pois nem sempre usar a palavra preta como adjetivo vai significar algo ruim, feio, perigoso, degradante.

Às vezes essa palavra é utilizada para designar coisas boas.

Não acredita. Então vejamos.

Quando eu digo que "você é o rei da cocada preta", isso é bom ou ruim?

Se eu acerto na loteria (isso é bom, pois não?), eu ganho uma "nota branca" ou uma "nota preta"?

Qual a bola de maior valor na sinuca, no bilhar e jogos similares? Não é a branca, é a preta. A branca, aliás, não vale nada; é apenas coadjuvante.

E qual a cor da faixa do bambambã em todas as artes marciais? E dos neófitos? Ah, você sabe!

Ou seja, usar cores como adjetivos não tem qualquer significado pejorativo. Dizer que "a coisa está preta" não vai denegrir (trocadilho inevitável) ninguém.

Como curiosidade, listo algumas cores e significados que lhes são atribuídos (aceito colaborações):
  • verde de inveja
  • azul de fome
  • roxo de paixão
  • bilhete azul
  • branco de susto
  • vermelho de raiva
  • tudo azul
  • amarelo de medo (Ronaldo Fenômeno amarelou, lembram?)
Devanir Nunes
ultima-flor-do-lacio.blogspot.com.br

sexta-feira, 23 de março de 2012

A saga do touro Arquibaldo

A SAGA DO TOURO ARQUIBALDO
Devanir Nunes
11 de maio de 2011

Dedicado a
Victor Gabriel Soares Nunes
Carlos Daniel Soares Nunes

PREFÁCIO


Devanir sempre gostou de contar histórias para seus filhos dormirem. Mas poucas vezes lia livrinhos de histórias tradicionais. Na maioria das vezes inventava histórias, de improviso. E eram momentos tão animados, alegres, mágicos, que geralmente serviam mais para espantar o sono que atraí-lo. Assim surgiu Arquibaldo.
Ele é pouco mais novo que Victor Gabriel, pois surgiu quando essa bela criança tinha uns três anos. Talvez quatro.
Geralmente VG dormia no meio da história, e no dia seguinte pedia para contar de novo, pois ficava curioso para saber o final. Como não dava para lembrar tudo, algumas coisas eram alteradas. Mas ele lembrava e reclamava, fazendo a história voltar ao original.
Depois VG cresceu, e chegou Carlos Daniel. Houve um intervalo de alguns anos em que a história “caiu no esquecimento”. As aspas significam que a história deixou de ser contada, mas nunca foi realmente esquecida.
Quando CD começou a ter algum entendimento, a história foi resgatada, evidentemente com algumas alterações, pois nunca tinha sido escrita, nem era essa a intenção. E cada vez que era contada, seja na era VG, seja na era CD, ganhava novas nuances e novos detalhes.
CD chegou aos sete anos, 2º ano do Ensino Fundamental, e ao se deparar com a pergunta “Qual sua história preferida?” em um trabalhinho escolar, escreveu: ARQUIBALDO. A tia deu-lhe um E. Fiquei um pouco chateado, mas a chateação logo cedeu lugar à compaixão. Ah, esse ensino automatizado que espera respostas prontas! A professora queria que ele citasse uma das histórias tradicionais, e de preferência uma das conhecidas por ela.
Mas eu não sou assim; não me limito ao conhecimento tradicional.
Aí veio o impulso para colocar a história no papel, para mostrar à professora que meu filho estava certo, e que ela não conhece todas as histórias, escritas ou não. Mas essa necessidade de vingança logo passou, substituída por um novo desejo: compartilhar a história com outros pais e outras crianças.
Espero que gostem.
Devanir Nunes

A SAGA DO TOURO ARQUIBALDO
Esta história se passou há muitíssimo tempo, um tempo em que Arquibaldo se escrevia com CH em vez de QU. Mas se pronunciava do mesmo modo que hoje.

Naquela longínqua época, muitas cidades que hoje são enormes eram ainda pequenas vilas, aldeias, povoados ou lugarejos. Barcelona era uma dessas. Mas Madri, não. Ah, Madri. Madri já era bem grande, pelo menos para aqueles tempos.

Essas cidades hoje são enormes e lindíssimas e ficam na Espanha, um país muito bonito e alegre, que todos deveriam conhecer. Mas voltemos àquele tempo.
Na vila de Barcelona vivia um touro. Não era um touro qualquer, era o Arquibaldo, o touro mais lindo que já existiu. Nunca mais houve um touro tão belo, até os dias de hoje. Era realmente muito bonito e grande. Todo preto e lustroso, e quando o sol estava muito forte seu reflexo no pelo do Arquibaldo chegava a ofuscar quem estivesse por perto. As pessoas tinham até que fechar os olhos.
Era muito grande. Já falei isso, eu sei, mas é preciso repetir: ELE ERA MUITO GRANDE! MUITO GRANDE MESMO! E forte como um touro!
Tinha um par de chifres que metiam medo. Saindo do alto da cabeça, logo acima dos olhos e perto das orelhas, davam duas voltas no ar, e terminavam com pontas bem afiadas, mas tão afiadas, mas tão afiadas, que chegavam a brilhar como se fossem agulhas de ouro. E metiam medo, ah, se metiam!
Mas ... apesar de toda essa fortaleza, Arquibaldo era muito manso e calmo. E não era lá muito inteligente. Ah, não era mesmo. Inteligência ali passou longe.
Ele vivia em uma fazenda. Nasceu, cresceu e sempre viveu naquela fazendinha, e nem sabia que existiam outras, pois as fazendas ficavam muito distantes umas das outras, e o dono do Arquibaldo nunca o levou além da porteira.
Arquibaldo trabalhava de sol a sol, e, quando tinha lua, trabalhava de sol a lua. Trabalhava o dia inteiro e mais um pouco. Seu trabalho era puxar uma carroça que o fazendeiro vivia enchendo de pedras. E esvaziando também, é claro.
Como não era lá muito inteligente, o pobre imaginava que estava carregando as mesmas pedras, um dia de lá para cá, e outro de cá para lá. E o fazendeiro não se dava ao trabalho de explicar para o touro a natureza do seu trabalho. Já viu alguém explicar alguma coisa para um touro? Tinha que carregar pedras e pronto!
Mas, com o passar dos anos, e bota ano nisso, Arquibaldo começou a se sentir cansado. Era o peso da idade, mas ele nem sabia. O único peso que conhecia era o das pedras.
E começou a se lamentar:
– Ai, ai, ai! Ai, ai, ai! Isso não é vida! Ah, não, vida isso não é. Não aguento mais. Nem sei mais há quanto tempo carrego essas pedras. Acho que já nasci fazendo isso. Será que mudar um dia isso vai? Será que um dia isso vai mudar? É pedra pra lá, pedra pra cá. Por que meu dono não deixa as pedras quietinhas onde estavam?
Após isso, Arquibaldo ficou em silêncio por algum tempo, um silêncio triste e pesado, um silêncio de desânimo, falta de esperança, desesperança.
De repente, ouve-se um ruído:
– Riiiiinch.
– Que foi isso? Eu conheço esse barulho. Cadê você? Aparece, Teobaldo, pare de se esconder. Eu sei que é você. Eu conheço seu relincho de longe.
Era o Teobaldo, amigo de longa data, desde quando esse nome se escrevia com TH.

Pelo relinchar já dá para sabermos que se tratava de um cavalo. Mas não era um cavalo qualquer. Era um cavalo especial, o Teobaldo! Arquibaldo gostava muito dele. Na verdade, Teobaldo era seu único amigo.
Teobaldo apareceu. E como gostava muito de falar, começou imediatamente a tagarelar:
– Arquibaldo, amigo meu, não pude deixar de ouvir seus resmungos, seus lamentos, suas queixas. Que se passa, meu velho? Parece-me que você não está muito feliz, aliás, parece-me bastante infeliz. Conte pra mim, vá, confie no seu amigo. Seja o que for, farei tudo para ajudá-lo. Desembucha.
– Ah, Teo, sabe, é essa minha vida. Desde que me entendo por gente, aliás, desde que me entendo por touro, minha vida tem sido carregar essas pedras. E parece que a cada dia elas ficam mais pesadas. E a carroça parece cada vez maior.
– Mas Arq, não precisa ser sempre assim. Tudo pode mudar. Você pode sair dessa caverna.
– Caverna?! Que caverna?! Isso aqui é uma fazenda.
– Maneira de dizer, Arq. É que andei lendo um livro que tinha uma história parecida com a sua, e que se passava numa caverna.
Teobaldo era muito culto, sabia até ler livros de gente. Ele continuou.
– Porque você não vai embora daqui, e toma as rédeas da sua vida?
– Que rédeas? Quem usa rédeas é você, que é cavalo.
– Outra vez maneira de dizer. Olha, você podia ir para Madri.
– Madri? Nunca ouvi falar nisso. É coisa de comer?
Arquibaldo não sabia mesmo de nada, coitado. Pensava que Madri fosse uma coisa de comer, veja só, coisa de comer! Nós sabemos que Madri é o nome de uma cidade. E já naquele tempo era uma cidade grande, bem diferente de Barcelona, isso também sabemos.
Teobaldo continuou, enquanto Arquibaldo ficava cada vez mais cheio de dúvidas, mas também maravilhado com a inteligência do amigo cavalo.
– Madri é uma cidade grande, com muitas casas, muitos prédios, muitas lojas.
– Prédios? Lojas? O que é isso?
– Depois entramos nos detalhes. Vamos falar do que interessa. Em Madri há muita gente e muitos touros. E lá os touros são valorizados.
– Disso eu gostei. Valorizado, eu sei o que quer dizer.
– Pois é, os touros trabalham nas touradas, e ganham muito bem. E há muitas vacas e bezerras também. Você poderá escolher uma bem bonita, casar e ter sua própria família. Não precisa viver solitário como aqui.
E com esses belos chifres você será um sucesso garantido. E esse pelo lustroso, então. Quando os holofotes forem dirigidos para você, você será o touro mais brilhante que já se viu em toda a Espanha, desde Viscaya até Cádiz.
– Tá bom, tá bom, tá bom, você me convenceu. E como eu faço para ir para esse paraíso chamado Madri?
Arquibaldo estava muito entusiasmado, e já sonhava com sua nova vida, onde tudo seria alegria, felicidade, satisfação. Imagine só, ele, que nunca vira sequer outra fazenda, agora iria conhecer outra cidade. E não só conhecer, mas mudar-se para lá.
Arquibaldo já começava a ficar impaciente. Então Teobaldo passou a dar instruções mais claras de como Arquibaldo poderia fazer para entrar naquela aventura.
– Sabe aquele dinheirinho que você disse que tem? Aquele que está bem escondido? Aquilo é seu passaporte para o futuro, para a sua nova vida, para a felicidade.
– Passaporte?! Ah, deixa pra lá. Continua.
– Você vai pegar seu dinheiro, ir até a estação e comprar uma passagem de trem. Faça assim: abra a porteira, siga por aquele caminho em frente, atravesse o rio que tem lá adiante, suba o morrinho, desça do outro lado e você verá uma casa verde. Lá é a estação. Você vai até o guichê, que é uma janelinha de vidro com um buraquinho redondinho no meio. Você entrega o dinheiro ao homem que está lá dentro e diz que quer uma passagem para Madri. Depois pergunta ao homem como faz para pegar o trem. Pronto, simples assim. Mas você tem que acordar bem cedo, para o fazendeiro não perceber, senão ba-bau.
E Arquibaldo fez tudo direitinho: acordou quando ainda estava escuro, pegou o dinheiro, abriu a porteira, seguiu pelo caminho em frente, atravessou o rio, subiu o morrinho, desceu o morrinho, e finalmente achou a casa verde. Era a estação. Seu coração disparou de emoção.
Chegando em frente ao guichê, Arquibaldo estufou o peito, levantou a cabeça (e os chifres) e falou com firmeza:
– Moço, eu quero uma passagem para Madri.
O bilheteiro olhou para ele com uma cara de cansado, e perguntou:
– Passagem de ida e volta?
“Ai, ai, ai”, pensou Arquibaldo, “e agora?”
Passado o susto, Arquibaldo respondeu com outra pergunta:
– Como assim, o que quer dizer “passagem de ida e volta”?
– Se o senhor vai passear em Madri e depois vai voltar para Barcelona, precisa de uma passagem de ida e volta.
– Ah, não. Voltar? De jeito nenhum! Nem que a vaca tussa! Ou cuspa! Ou espirre! Ou solte um pum!
Então o bilheteiro entregou ao Arquibaldo uma passagem só de ida, e guardou o dinheiro numa gaveta.
Arquibaldo seguiu para a plataforma, conforme o bilheteiro explicou, sentou-se em um banco velho e já meio quebrado, e ficou esperando, pois o bilheteiro disse que o trem ia demorar.
Umas duas horas depois, quando o sol já tinha aparecido, ouviu-se um som:
– Piuííí ...
Arquibaldo assustou-se.
– O que é isso? Que ruído estranho! O que está acontecendo?
Um passageiro que estava por perto explicou:
– Calma, moço. É o trem que está chegando. Toda vez que passa por uma curva o maquinista toca o apito,
– Pra quê?
– Para as pessoas - e os animais também - que estão depois da curva saberem que o trem está se aproximando, e não ficarem no meio da linha, pois é muito perigoso.
– Ahhhh!
Arquibaldo fez cara de quem estava entendendo, mas na verdade ele nem sabia direito o que era uma curva. Mas nós sabemos!
Finalmente o trem apontou lá na última curva e Arquibaldo já podia ver.
– Nossa, que bichão! Como é grande! Parece um monstro de ferro cuspidor de fumaça!
Logo o trem chegou na estação. Arquibaldo estava tão admirado, que ficou parado na plataforma, enquanto os outros passageiros embarcavam. Depois de algum tempo, e muita movimentação dos empregados da ferrovia, ouviu-se novamente o apito.
– Piuííí ...
Um fiscal chegou perto de Arquibaldo e falou:
– Olha, seu moço, se o senhor não embarcar logo, vai perder a viagem. Vamos, suba no trem.
– Subir? Mas o teto é muito alto! Não consigo.
– Moço, o senhor nunca viajou de trem, não? Subir quer dizer entrar. Entre no trem, por favor, porque precisamos partir imediatamente. Ou será que está com medo?
Medo?! Isso era coisa que o Arquibaldo não conhecia. Finalmente ele se deu conta do papel de bobo que estava fazendo, e entrou no trem. O mesmo fiscal, com pena dele por ver que era sua primeira viagem, orientou-o a sentar-se próximo a uma janela, para apreciar a paisagem.
Arquibaldo adorou a experiência. Depois do susto com os solavancos da partida do trem, acalmou-se, e se admirava a cada coisa nova que descobria.
Passou por muitas fazendas, atravessou muitas pontes sobre rios, depósitos, silos, muita coisa nova.
Depois de algumas horas pôde ver alguns prédios, e não foi difícil identificá-los, pois Teobaldo tinha explicado direitinho como eram essas coisas.
O apito tocou diversas vezes, e Arquibaldo sempre repetia:
– Opa, lá vem mais uma curva!
Parecia uma criança em frente a um prato de doces. Tudo era só alegria.
Até que o trem começou a diminuir a velocidade, diminuiu, diminuiu, diminuiu ... e parou. Algumas pessoas desembarcaram, e Arquibaldo foi atrás delas exclamando:
– Oba, chegamos em Madri.
Um outro passageiro, que o observava durante toda a viagem, ajudou:
– Não, amigo, aqui não é Madri. Aqui é Fraga, nem saímos da Catalunha ainda. Volte para o trem, senão ele parte de novo, e o senhor fica a ver navios.
– Navios? Mas não estou vendo nenhum mar!
– Maneira de dizer, moço. O senhor fica na plataforma e perde a viagem. Melhor embarcar logo. E a próxima parada é em Zaragoza (que se pronuncia Saragôssa). Falta ainda um tantão pra chegar em Madri.
Arquibaldo estava admirado de como as pessoas o estavam ajudando, gente que ele nunca tinha visto mais gorda. Arquibaldo até aprendeu com uma velhinha simpática que os nomes das estações estavam escritos em placas que se podiam ver de dentro do trem mesmo antes de parar. Apesar de não ser muito inteligente, Arquibaldo não era analfabeto, e ia lendo as placas: Zaragossa, Calatayud, Arcos de Jalón, Guadalajara.
Epa! De repente Arquibaldo percebeu que já estava perto. Um menino muito sabido, que tinha descido lá atrás, tinha ensinado para ele que Guadalajara era a última parada antes de Madri. Seu coração disparou de novo, igualzinho tinha acontecido quando ele conseguiu achar a casa verde da estação, lá em Barcelona.
– Madri! Madri! Atenção, senhores passageiros, estamos chegando em Madri, todos devem desembarcar.
Era o auxiliar do maquinista, que vinha com um megafone anunciando para quem quisesse ouvir, e mesmo para quem não quisesse.
Depois de alguns minutos o trem parou. Arquibaldo saltou e não sabia para onde olhar. Tudo era maravilhoso. Então ele se lembrou das últimas instruções do velho amigo Teobaldo: sair da estação e perguntar a alguém onde ficava a “Plaza de Toros”.
Em Madri as pessoas eram todas muito simpáticas também, e logo ensinaram a ele como achar a “Plaza de Toros”. Não era muito fácil, não. Era bem mais difícil do que ir da fazenda até a estação, lá em Barcelona. Mas ele achou.
Atravessou a rua da estação, entrou na rua em frente, andou contando oito esquinas. Agora ele até sabia o que era esquina. Dobrou à direita, andou mais cinco esquinas, dobrou à esquerda, atravessou uma praça.
“Ah, então isso é uma praça!”, pensou Arquibaldo.
Depois de um punhado de esquinas, curvas à direita, curvas à esquerda, praças e pontes ... Ufa!
Lá estava. A tão falada “Plaza de Toros de Las Ventas”. Era enorme. Era uma espécie de estádio. Arquibaldo ficou dando voltas no estádio, e só via portas fechadas.
Finalmente achou uma portinha aberta. Entrou pigarreando e tossindo para chamar a atenção de alguém que pudesse estar por ali, pois não via ninguém.
Até que apareceu um senhor de cabelos grisalhos. Ele se parecia com o dono da fazenda de onde Arquibaldo viera. Mas a essas alturas Arquibaldo não se admirava com mais nada. Cumprimentou e perguntou:
– “Buenos dias, señor”. Como é que eu faço para trabalhar nas touradas?
O senhor olhou para ele de alto a baixo, de lado a lado, deu umas três voltas e meia nele, e finalmente disse:
– É, meu rapaz, você realmente parece ter jeito para a coisa. É grande, forte, bonito e esses chifres, ah, esses chifres, nunca vi nada igual. Vamos até meu escritório para você preencher a ficha de inscrição e assinar o contrato. Vou colocá-lo em uma corrida de touros amanhã mesmo. E contra o melhor toureiro de toda a Espanha.
– Mas, preciso que alguém me explique o que tenho que fazer. Meu amigo Teobaldo me explicou alguma coisa, mas ...
– É muito simples. Você vai entrar na arena por um lado e o toureiro vai entrar pelo outro.
– E como é esse toureiro?
– É um homem magrinho, até meio engraçado, com uma roupa bem colada no corpo, e uma capa vermelha, que ele fica balançando.
– E o que eu tenho que fazer?
– Você tem que tentar acertar o toureiro com esses seus maravilhosos chifres.
– Moleza! – disse Arquibaldo.
E então chegou o domingo, e lá estava o Arquibaldo, próximo à sua porta, brilhando mais que nunca, pois tinha levado uma bela escovada. Do outro lado ele podia ver o toureiro, próximo à outra porta. Um locutor fez os anúncios, e a galera gritava com todo o entusiasmo:
– Olé! Olé, touro. Olé. Olé, touro.
Então Arquibaldo entrou na arena por um lado e o toureiro pelo outro. Ficaram se olhando de frente, o toureiro agitou sua capa, e Arquibaldo entendeu que era ora de agir. Soltou um mugido bem forte, bufou, esfregou as patas no chão, e partiu a toda velocidade.
– Muuuuuuu, blerf, blerf, muuuuu ...
E lá ia ele, em alta velocidade, bem na direção do toureiro, pensando em como seria fácil dar uma chifrada naquele magrelo, jogá-lo longe, e passar no caixa para pegar seu dinheiro, pagamento justo por um trabalho bem feito.
– Pocotó, pocotó, pocotó
(Não é bem esse o som que faz um touro correndo, mas
é muito difícil escrever, então vai pocotó mesmo).
Mas “quioquê”! Quando estava bem pertinho, já certo que ia acertar o toureiro, este se desviou para o lado direito, e Arquibaldo passou como um trem sem freio.
– Boooinnnng.
Era a cabeça do Arquibaldo batendo contra o muro de proteção, onde ficavam os repórteres, as autoridades e alguns penetras.
– Ai, caramba. Que foi que aconteceu?
O treinador, só agora, explicou para o Arquibaldo que o toureiro tinha o direito de se esquivar. Afinal, ninguém gostaria de receber uma chifrada daquelas. Então Arquibaldo pensou, pensou, pensou, e descobriu uma solução. Pelo menos ele achava que tinha descoberto uma solução. Disse para si mesmo:
– Bom, já que ele se desviou para o lado direito, vou desviar para lá também, e acertá-lo em cheio.
E lá foi ele na segunda tentativa.
– Muuuuuuu, blerf, blerf, muuuuu ...
– Olé! Olé, touro. Olé. Olé, touro.
– Pocotó, pocotó, pocotó.
Quando chegou bem pertinho do toureiro, Arquibaldo se desviou para a direita, mas desta vez o toureiro desviou para a esquerda. Um dos chifres de Arquibaldo chegou a pegar a capa do toureiro, rasgando-a ao meio, mas ... Boooinnng! De novo.
– Ai, minha cabeça. O que se passa com esse toureiro? Já sei, da próxima vez vou fingir que vou para a esquerda, aí ele desvia para a direita, então eu volto para a direita e acerto-o em cheio.
E lá vai Arquibaldo, confiante de que desta vez daria certo. Pobre Arquibaldo, se ele soubesse que os seres humanos são muito mais astutos!
– Muuuuuuu, blerf, blerf, muuuuu ...
– Olé! Olé, touro. Olé. Olé, touro.
– Pocotó, pocotó, pocotó.
– Booooiiiiinnnnggg.
Demorou, mas Arquibaldo caiu na real. Depois de uns dez boings, percebeu que nunca conseguiria pegar aquele toureiro, que era mais esperto que ele. Começou a achar que tudo não passava de um grande engano.
De repente bateu uma saudade da fazenda. Naquele instante Arquibaldo decidiu de uma vez por todas que tinha que voltar. Chamou o treinador no canto e disse que queria desistir. O treinador ficou furioso.
– Como assim, desistir? Você não pode. Esse povo vai invadir a arena e não vai sobrar pedra sobre pedra.
Arquibaldo estava decidido:
– Não adianta, dessa brincadeira eu não participo mais.
– E o contrato? E o dinheiro que eu lhe prometi.
– Pode ficar com tudo. Só me dê uns trocados para a passagem. Vou voltar para Barcelona.
– Então me faça um último favor. Eu não posso interromper a corrida. Entra lá e faz de conta que teve um ataque e cai duro, como se estivesse morto. Assim o povo não vai se revoltar.
– Tudo bem, isso eu posso fazer.
No dia seguinte lá estava Arquibaldo no trem, indo de Madri para Barcelona, quando passa um menino vendendo jornais. Arquibaldo compra um com os últimos trocados que sobraram, e vê a manchete:
– O touro mais bonito que já passou pela “Plaza de Toros de Las Ventas” tem um ataque do coração e cai morto em plena arena.
Arquibaldo sorriu, e disse para si mesmo:
– Que Madri que nada. Lugar bom de se viver é Barcelona.
 FIM 

PS - Procuro um ilustrador e um editor para esta história.

Devanir Nunes
ultima-flor-do-lacio.blogspot.com.br


Não fale ambiguamente

ambiguidade
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[Do lat. ambiguitate.]
S. f.
 1.     Qualidade ou estado de ambíguo.
 2.     E. Ling.  Anfibologia (1).
 3.     Automat.  Num servomecanismo, existência de dois ou mais estados de equilíbrio.
 4.     Lóg.  Sofisma verbal.

Os casos que vou relatar não são exatamente de ambiguidade, se considerarmos a definição ao pé da letra, conforme mostrado acima, extraído do Dicionário Aurélio. Mas por falta de termo melhor, resolvi enquadrá-los no conceito de ambiguidade, já que são frases que deixam o leitor ou ouvinte confuso, sem saber o que o emissor quis dizer.

O primeiro exemplo veio de uma locutora de rádio, ou melhor, de uma repórter de rua, que falava sobre o trânsito. Disse ela: "Na Rua Jardim Botânico o motorista enfrenta trânsito tranquilo."

Como assim "enfrentar", moça? Este verbo nos remete à ideia de dificuldades, de confronto, de disputa. Se o trânsito está bom, tranquilo, então o motorista vai se beneficiar, chegar mais cedo no trabalho. Não vai ter que enfrentar coisa nenhuma. Acredito que, uma vez que o trânsito no Rio de Janeiro anda tão caótico, em todos os lugares, ela deve estar habituada a dizer que "o motorista vai enfrentar trânsito difícil". Aí nem pensa mais na frase, apenas muda a palavra principal, que é como o trânsito se encontra. Mas, por favor, se encontrarem trânsito difícil na Rua Jardim Botânico, não me culpem. O fato que relatei aconteceu há muitos anos, quando ainda era possível encontrar trânsito fácil em uma rua ou outra. Bons tempos!

O segundo exemplo eu capturei de um noticiário televisivo. Peguei a notícia pela metade, pois estava fazendo outra coisa com a televisão ligada, mas quando alguém fala uma besteira, parece que meus neurônios registram automaticamente. Foi há pouco tempo, quando o Oscar estava sendo decidido; ou manipulado, se preferirem. A repórter falava de um filme onde muitas coisas boas aconteciam, e lascou: "Não basta mais nada para ser feliz."

Ai, meus provectos tímpanos! Evidentemente, a moça não deve saber muito bem o que significa bastar. Bastar significa ser suficiente. Então o correto seria ela dizer: "Basta aquilo para ser feliz". Ou: "Não é necessário mais nada para ser feliz". Se eu estivesse frente a frente com ela, diria: "Moça, agora basta!"

O terceiro exemplo vem do rádio, de novo. Assim como parece que os profissionais de SAC são os campeões do gerundismo, os locutores do audiovisual parecem despontar como campeões da ambiguidade. Anunciavam-se algumas promoções de uma determinada empresa. Alguns prêmios que o ouvinte poderia se habilitar a ganhar ligando para a emissora. O locutor então apresenta a seguinte pérola: "São muitos prêmios. É prêmio que não acaba mais. Mas tem que ligar agora, pois coisa boa assim acaba rapidinho". Pois é, acaba ou não acaba? Na dúvida, mudei de estação.

Devanir Nunes
ultima-flor-do-lacio.blogspot.com.br





quarta-feira, 21 de março de 2012

Obrigado ou obrigada?

"Obrigado(a)", no caso de agradecimento, é um adjetivo; portanto concorda em gênero e número com quem o locuciona.

Ex: Obrigado, disse o rapaz ao senhor que o ajudou. Obrigada, disse a mãe ao médico.

Sendo você mulher, dirá sempre "obrigada".

Essa palavra significa: ser devedor de algo a alguém ou sentir-se agradecido(a) a alguém por algo.

Note também que a resposta a um "obrigado" geralmente é, na língua informal, um "obrigado você". Pensando na significação descrita acima, estaríamos repassando novamente a obrigação à pessoa que acaba de nos agradecer. Melhor será um "por nada" ou "não há de quê". Caso queiramos usar o "obrigado", digamos então: "obrigado eu" ou “obrigado a você". Sempre lembrando que o adjetivo se flexiona em gênero e número.

Devanir Nunes - Fonte: http://br.answers.yahoo.com

É muito bom quando escrevemos algo e recebemos um feedback, isto é, um retorno de um dos leitores, seja para elogiar, comentar, questionar ou até mesmo criticar.

Quem faz isso com alguma frequência - não o criticar, mas as outras três coisas-, e sempre com uma boa motivação é a Sandra Mara, a quem envio um beijo carinhoso de agradecimento por seus incentivadores comentários.

No boletim (da IPJ-Igreja Presbiteriana de Jacarepaguá) de 27/6/10 foi inserido um quadro que tentava explicar a forma correta de homens e mulheres agradecerem. E terminava com a frase: "Sempre lembrando que o adjetivo se flexiona em gênero e número".

Sandra achou estranho, pois não soava bem falar "obrigados". Na hora concordei, e ponderei que talvez aquela frase fosse desnecessária naquele contexto.

Mas não!

Como prometi, pesquisei, e encontrei o texto abaixo, que mostra que o adjetivo obrigado pode, sim, flexionar-se em gênero e número.

Fonte: http://jornal.valeparaibano.com.br/2002/10/10/viv01/inculta.html (pela expressão "inculta", para os amantes do idioma, já dá pra identificar o Autor (é, aqui acho justificável o A maiúsculo). Se não identificou, verá no final.

Gramática: 'Obrigados nós'

Uma das questões que mais intrigam os leitores é a do agradecimento.

São José dos Campos, madrugada de domingo, controle remoto à mão, caio no 'Altas Horas', em que cantam Caetano Veloso e Jorge Mautner. Terminada a apresentação, Serginho Groisman agradece: 'Obrigado!'. Incontinenti, Caetano responde, em seu nome e no de Mautner: 'Obrigados nós!'. E o autor da genial 'Vampiro' repete: 'Obrigados nós!'.

Eis aí uma das questões que mais intrigam os leitores: o agradecimento em português. Quem diz o quê? E como responde quem recebe o agradecimento?

Não faltam teorias 'estranhas' sobre o assunto. Uma delas (volta e meia alguém me pergunta se é verdadeira) diz que o agradecimento não depende de quem o faz, mas de quem o recebe. Sendo assim, dir-se-ia 'obrigado' a um homem e 'obrigada' a uma mulher. Esqueça isso.

Antes de entrar no mérito da questão, talvez seja bom lembrar que nossa forma de agradecer difere das de nossos irmãos neolatinos. Os italianos dizem 'grazie'; os espanhóis, 'gracias'; os franceses, 'merci' (que tem a mesma origem de 'mercê', que significa 'graça', 'favor', 'benefício').

E de onde vem o nosso 'obrigado'? Vem mesmo da ideia de obrigação, de sentir-se obrigado, de ficar obrigado (a alguém, por algo). Ao pé da letra, quem diz 'obrigado' assume a obrigação de retribuir o favor recebido.

Originariamente, 'obrigado' é o particípio de 'obrigar', mas, no caso, é usado como adjetivo, o que impõe sua concordância com o sexo do ser que faz o agradecimento, ou seja, que se sente 'obrigado' a retribuir o favor recebido.

Moral da história: um homem diz 'obrigado' (a quem quer que seja); uma mulher diz 'obrigada' (a quem quer que seja).

E alguém que fala em seu nome e no de outrem? É aí que entra o caso de Caetano e Mautner. Caetano agradeceu em nome da dupla, por isso disse 'Obrigados nós!' ('Obrigados estamos nós!'; 'Obrigados ficamos nós!'; 'Obrigados sentimo-nos nós!' etc.).

E se uma mulher agradecesse em seu nome e no de outras mulheres? Diria 'Obrigadas!'.

Bem, essa é a teoria, não raro posta em prática, como atestam o exemplo de Caetano, o de Mautner e o de muitas pessoas que, quando falam em seu próprio nome, dizem 'Obrigado/a!', 'Muito obrigado/a' ou 'Obrigado/a eu!'.

O fato é que, no singular, 'obrigado' (dito por um homem) e 'obrigada' (dito por uma mulher) não causam estranheza, o que talvez não se possa dizer do plural. Alguém que fizesse um discurso em nome de um grupo, que dissesse 'nós isso', 'nós aquilo', 'nós aquilo outro' e que terminasse com algo como 'Só nos resta dizer 'muito obrigados' a todos os que...' provavelmente surpreenderia boa parte da plateia.

Talvez seja por isso que o professor Celso Luft faz esta observação: 'A própria insistência em alertar para essa regra de concordância prova que a invariabilidade é frequente, usual: 'Muito obrigado, querido'; 'Vamos bem, obrigado'. Trata-se, neste caso, de expressão interjetiva, invariável.'.

Em linguagem culta, no entanto (como diz o próprio Luft, em dezenas de situações semelhantes), convém usar a forma originária, o que implica fazer a concordância de 'obrigado' com o sexo do ser que agradece. É isso.

Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

Devanir Nunes
ultima-flor-do-lacio.blogspot.com.br

sexta-feira, 16 de março de 2012

Rodrigo não é filho pródigo

Hoje vou falar, ou melhor, escrever sobre o uso indevido de algumas palavras e expressões. Às vezes até dá certo, e uma palavra ou expressão acaba assumindo um outro sentido, perdendo ou não o sentido original. Quando um novo sentido é agregado, sem perda do original, dizemos que foi criada uma nova conotação. Isso é muito comum entre os criadores de gírias. Algumas gírias acabam pegando, e se tornam parte integrante da língua oficial.

Coroa, por exemplo, continua com seus sentidos originais (não vou relacionar, pois são muitos; sugiro conferir no dicionário), mas lá pelos idos dos anos 60 ganhou uma nova conotação, que, embora classificada como gíria, caiu no gosto popular, de forma que hoje muita gente pensa que sempre foi assim. Essa conotação se refere ao uso dessa palavra para designar alguém de mais idade. Hoje em dia essa expressão vem perdendo terreno para outra, que entretanto não podemos afirmar que vai vingar: mais velho. Que, aliás, me parece mais coerente.

Fiquemos apenas com esse exemplo, pois quero me deter em outra expressão: filho pródigo. Essa sim, utilizada de forma errônea, mas podendo um dia ganhar essa nova conotação, sem que aqueles que a utilizem tenham essa intenção, revelando apenas desconhecimento do seu sentido real.

Quem não tem intimidade com a Bíblia pode não saber, mas essa expressão é utilizada no livro de Lucas, no capítulo 15, onde intitula o bloco registrado pelos versículos 11 a 32: A parábola do filho pródigo. Como se vê nessa parábola, o personagem central desperdiçou totalmente seus bens e dinheiro, que tinha exigido do pai como antecipação de sua herança, quando resolveu deixar o lar e ir viver a sua vida. Sugiro essa leitura, pois é muito ilustrativa.

Há poucos anos meu filho Rodrigo veio morar comigo, em virtude do falecimento de sua mãe, de quem eu era divorciado. Não poucas pessoas, ao tomarem conhecimento da mudança, diziam algo como: "Ah, esse é o filho pródigo que voltou." Ouvi isso até mesmo de muitos irmãos da minha igreja, que parecem não ter entendido bem a parábola.

Sempre fiquei na minha, afinal não me ofendia. Mas talvez ofendesse Rodrigo, que nunca foi pródigo.

Mas o que é pródigo, então?

Há diversas definições (conotações) no Aurélio, mas a que me parece mais conclusiva, e que remete à parábola citada é a seguinte: Que despende com excesso; dissipador, esbanjador.

O Código Civil, no seu artigo 4º, ao definir capacidade relativa, estabelece que "são incapazes, relativamente a certos atos [...]: os maiores de dezesseis e menores de dezoito; os ébrios [...] viciados [...] discernimento reduzido; os excepcionais [...]; os pródigos".

Juntando as duas fontes, percebemos que pródigo é alguém que não consegue gerir sozinho seus recursos, sendo capaz de desperdiçá-los rápida e inconsequentemente.

Portanto, uma pessoa que se foi, e um dia voltou, não é, necessariamente, um "filho pródigo". Tudo vai depender do que ela fez enquanto estava "lá fora".

O filho da parábola era pródigo não por ter voltado, mas por ter jogado tudo no ralo.

Devanir Nunes
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quinta-feira, 8 de março de 2012

A gente não fazemos

Normalmente o vocábulo gente é substantivo feminino. Veja alguns exemplos:
  • Havia pouca gente no cinema.
  • A gente do meu bairro gosta de flores.
  • A gente do teatro foi em peso à festa.
  • Aquele assassino nem parece gente.
  • Não quer ver gente.
  • Serei eleito com os votos da minha gente.
Mas a língua é rica, e muitas palavras podem assumir outras conotações. A palavra gente pode também ser usada como pronome.

– Como assim, mestre, pronome?!

– Sim, dileto aluno, na linguagem coloquial (aquela em que abrimos mão de alguma rigidez), “gente” pode ser usada no lugar de “nós”, e aí será sempre precedida do artigo “a”.

Exemplos:
  • A gente foi lá ontem.
  • A gente fez o trabalho.
  • A gente não gostou do que viu.
Mas cuidadinho aqui. Embora substitua “nós”, e traga uma ideia de coletivo (1ª pessoa do plural), a concordância (tempo do verbo) com “a gente” deve SEMPRE ser no singular, e pior, como se fosse a 3ª pessoa (ele, ela). Lamento, mas Português é assim mesmo. Afinal, viemos do Latim vulgar, falado pelos povos conquistados pelo Império Romano.

Sempre escreva: "A gente fez", "A gente foi", "A gente comeu", e nunca: "A gente fizemos", "A gente fomos", "A gente comemos".

Verbo no plural, somente se você usar a forma nós: "Nós fizemos", "Nós fomos", "Nós comemos".

Para terminar, decifre a frase “A gente orou na vigília”. Será que estou dizendo que “As pessoas oraram ...” ou “Nós oramos ...”? Dever de casa.


Devanir Nunes
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Não gosto de estória

Não é que eu não goste de “causos”; o que não gosto é desse pseudovocábulo “estória”. Não gosto porque não existe. Vejam no Aurélio:

estória                                                

  
S. f.
 1.     V. história.

[Recomenda-se apenas a grafia história, tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de narrativa de ficção, conto popular, e demais acepções.]
 
Alguns escritores forçam a barra para que seja aceito, mas os verdadeiros linguistas rejeitam. É ... talvez hoje eu esteja exigente demais, mas vamos em frente.

João Ribeiro, grande conhecedor da nossa língua, propôs em 1919 que o termo, encontrado em textos medievais de Portugal – arcaico, portanto –, fosse reabilitado, para ser usado com relação a contos folclóricos, distinguindo-os dos relatos da História.

Embora endossado por Luís da Câmara Cascudo, trata-se de um equívoco. Na verdade a “estória” medieval não se distinguia de “história”. Havia várias maneiras de se escrever a mesma coisa, pois a ortografia ainda não estava estabilizada. Encontravam-se lado a lado as formas historia, hestoria, estoria, istoria e estorea (assim mesmo, sem acentos, que são do século XX). O mesmo acontecia com homem, omem, omee (às vezes com til no primeiro e) e até ome.

Mas já no século XVI – podemos ver em Camões – estava sedimentada a forma historia, única, ainda sem o acento.

Um dos argumentos a favor do vocábulo é que em inglês se faz distinção entre story e history. E daí? Nós fazemos distinção entre ser e estar, e eles não. Não temos que copiá-los, nem eles a nós; apenas somos diferentes. Quer mais? Eles fazem distinção entre time e weather, e nós usamos apenas tempo (seja para o relógio ou para o clima). Para eles can e may são diferentes; para nós ambos são poder. Ah, e nós temos saudade e eles não.

Temos grandes diferenças até em relação ao Espanhol, língua do mesmo tronco que a nossa. Enquanto usamos os termos zelo, cio e ciúme, los hermanos usam apenas um para as mesmas coisas: celo.

Portanto chega de “estória”.

Fonte (entre outras): http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/05/06/a-triste-historia-de-estoria/?topo=

Devanir Nunes
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Pra mim estudar?! Como assim?!

Afinal de contas, quando usamos o eu e o mim? Que dúvida cruel!

Para facilitar a coisa, preste atenção no macete abaixo:

O EU só trabalha e o MIM só recebe.

Exs.: O livro é para eu ler. A tarefa é para eu fazer. O bolo é para eu comer.

Você pode observar que nos exemplos acima a pessoa que faz a ação de ler, de fazer, de comer, de corrigir e de pagar é o EU. Eta sujeitinho trabalhador! Na verdade, ele é o sujeito de cada oração. Lembre-se que é o SUJEITO que pratica uma AÇÃO.

E por que o “mim” só recebe? Observe: a bronca é para mim, o brinquedo é para mim, os doces são para mim. Se o presente é bom ou ruim, não importa, é sempre para mim!

Ainda não entendeu? Então, observe a frase abaixo:

"Era para mim estudar?"

Na frase, como há um verbo/ação (estudar) exigindo sujeito (alguém vai estudar), devemos colocar um pronome que funcione como sujeito, um pronome pessoal do caso reto – eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas. Os pronomes oblíquos tônicos – mim, ti, si, ele, ela, nós, vós, eles, elas (pronomes que só se usam com preposição) – funcionam como complementos.

Então, se não houver verbo à frente, deve-se usar mim ou ti. E se houver verbo exigindo sujeito, eu ou tu (você).

Portanto, a frase apresentada deve ser corrigida:

"Era para eu estudar?"

Devanir Nunes
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sábado, 3 de março de 2012

Chegou a hora dessa gente ...

"Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor
Eu fui à Penha e pedi à padroeira para me ajudar
Salve o Morro do Vintém, Pendura a Saia que eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar"

Isso é Brasil Pandeiro, de Assis Valente. Muito bonito. Mas tem um errinho de Português ali, só tolerado por causa da tal licença poética.

Não achou?! É o “dessa”.

Vamos passar para um exemplo mais simples e atual: “Chegou a hora do povo decidir”. Pense na gramática da frase: “o povo” é sujeito do verbo “decidir” (o povo decide). E sujeito nunca é regido por preposição.

Logo, não se justifica a contração da preposição “de” com o artigo “o”, que faz parte do sujeito. A preposição rege apenas o verbo (hora de decidir) e não o sujeito. O mesmo ocorre com os pronomes ele, ela, aquele, aquela, este, esta, esse, essa, quando fazem parte do sujeito.
  • Chegou a hora de ele decidir.
  • Chegou a hora de aquele homem decidir.
  • Chegou a hora de essa gente bronzeada mostrar seu valor.
Ah, Assis Valente suicidou-se aos 47 anos, desesperado com as dívidas. Que pena!

Fonte: 1001 Dúvidas de Português, José de Nicola e Ernani Terra

Devanir Nunes
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quinta-feira, 1 de março de 2012

Aqueles que estamos ...

A princípio esta expressão não parece ter nada de mais (não confundir com demais). Ora, ela pode bem ser parte da seguinte frase: Aqueles que estamos ajudando vão se dar bem. Mas não é disso que quero tratar. Quero estudar uma forma especial de “aqueles”, que tem o significado de “nós”.

– Oh, existe isso?!
– Claro!
A primeira vez que ouvi o Rev. Marcos Amaral dizer “Aqueles que podemos, nos ajoelhemos e oremos”, senti um incômodo auricular. Achava eu que ele deveria ter falado “Aqueles que puderem, ajoelhem-se e orem”.

Mas não sou radical. Conversei com a Simone em casa, e ela opinou que estava certo. E ainda explicou que é porque ele estava se incluindo. Consultei meus alfarrábios e a Internet, e concluí: Simone estava certa em dizer que o pastor estava certo.

E o que encontrei nas tais consultas?  Encontrei que, sim, o vocábulo aqueles pode ser usado no lugar do vocábulo nós.

Veja alguns exemplos que pincei na Internet, proferidos por pessoas e sites de bom nível de conhecimento:
  • Todos aqueles que somos beneficiados pelo processo de orientação do projeto de desenvolvimento ... (http://www.triplov.com/buarque/index.html)
  • O bom ateu é um desafio para todos aqueles que temos fé e que vamos  assiduamente à igreja ou ao templo. (http://catolicos-na-florida-margate.org/joomla/index.php?option=com_content&view=article&id=245:o-bom-samaritano-e-o-bom-ateu&catid=35:homilias&Itemid=63)
  • Não somos aqueles que estamos dizendo adeus. (Dilma Roussef, no discurso de despedida)
  • Somos aqueles que diuturnamente trabalhamos na vigília, realizando um serviço de prevenção ... (http://www.diariodeumpm.net/2007/02/25/voces-sabem-quem-somos-nos/)
  • Aqueles que trabalhamos com uma criança ... estamos imersos em uma urdidura e uma trama incerta, pois os fios desta rede se tecem ...
    (http://www.proceedings.scielo.br)
É isto.

Devanir Nunes
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